Anselmo de
Cantuária, conhecido também como Anselmo de Aosta por conta de sua
cidade natal e Anselmo de Bec por causa da localização de seu mosteiro, foi
um monge beneditino, filósofo e prelado da Igreja
que foi arcebispo de Cantuária entre 1093 e 1109.
Chamado de fundador do escolasticismo, Anselmo exerceu enorme influência
sobre a teologia ocidental e é famoso principalmente por ter criado o argumento ontológico para a existência de Deus e a visão da satisfação sobre a teoria da
expiação.
Entrou
para a Ordem
de São Bento na Abadia de Bec aos vinte e sete anos e tornou-se abade
em 1079. Tornou-se arcebispo de Cantuária durante o reinado de Guilherme
II da Inglaterra.
Foi exilado por duas vezes, entre 1097 e 1100 e novamente entre 1105 e 1107 por
Henrique
I por causa da controvérsia
das investiduras,
o mais importante conflito entre a Igreja
Católica e os
estados medievais durante a Idade Média. Anselmo foi proclamado Doutor da Igreja numa bula papal de Clemente XI em 1720. Ele é venerado como santo
e comemorado em 21 de abril.
Biografia
Primeiros anos
Anselmo nasceu
em Aosta, parte
do Reino
de Arles, por volta de 1033.[1]
Sua família tinha fortes relações com a poderosa Casa
de Saboia[2]
e era muito rica. Seu pai, Gundulfo, era lombardo de
nascimento. Sua mãe, Ermemberga, que foi descrita como prudente e virtuosa,
veio duma antiga família burgúndia.[3][4]
Aos quinze anos,
Anselmo desejava entrar para um mosteiro, mas não conseguiu o consentimento do
pai e acabou sendo recusado pelo abade.[1]
O desapontamento aparentemente provocou-lhe uma doença
psicossomática. Depois de se recuperar, Anselmo desistiu de estudar e
passou a viver despreocupadamente; neste período, sua mãe morreu. Aos vinte e
três, Anselmo saiu de casa, cruzou os Alpes e viajou por
toda a Borgonha e a França.[5]
Atraído pela
fama de seu conterrâneo Lanfranco (que era o prior da beneditina Abadia
de Bec), chegou à Normandia em 1059. No ano seguinte, depois de algum tempo
em Avranches,
Anselmo finalmente entrou para a abadia como noviço aos
vinte e sete. Ao fazê-lo, submeteu-se à "Regra de São Bento", um evento que
reformularia todo o seu pensamento na década seguinte.[6]
Abade de Bec
Em 1063,
Lanfranco foi nomeado abade de Caen e Anselmo foi eleito prior em Bec,[7]
um cargo que manteve por quinze anos antes de tornar-se abade depois da morte
de Herluin, o fundador da abadia, em 1078. Foi consagrado abade em 22 de
fevereiro de 1079 pelo bispo de Évreux,[8]
o que foi acelerado por que, na época, a Arquidiocese de Ruão (a quem se subordinava
Bec) estava vaga. Se Anselmo tivesse que ser consagrado pelo arcebispo de
Ruão, teria
sido pressionado a jurar obediência, o que comprometeria a independência de Bec.
Sob o comando de
Anselmo, Bec tornou-se o principal centro de ensino na Europa, atraindo
estudantes de toda a França, Itália e outras regiões.[9]
Foi durante esta época que escreveu suas primeiras obras filosóficas, o
"Monológio" (1076) e o "Proslógio"
(1077-8). A elas se seguiram "Os Diálogos sobre a Verdade",
"Livre Arbítrio" e "A Queda do Diabo". Neste período,
Anselmo também lutou para manter a independência da abadia tanto dos poderes
seculares quanto do arcebispo.[10]
Posteriormente, Anselmo teve que lutar ainda contra Roberto de Beaumont, conde
(earl) de Leicester.[11]
Anselmo
ocasionalmente visitava a Inglaterra para supervisionar as propriedades
da abadia lá e também para visitar Lanfranco que, a partir de 1070, havia sido
nomeado arcebispo de Cantuária,[12]
de quem era considerado o sucessor natural. Com a morte dele em 1089, porém, Guilherme II da Inglaterra tomou as
propriedades e as rendas da sé e não nomeou um novo arcebispo. Em
Nos meses
seguintes, Anselmo tentou recusar o posto alegando estar velho e doente.[12]
Em 24 de agosto, apresentou a Guilherme as condições nas quais estaria pronto a
aceitar o posto. Elas eram parte de uma agenda de reformas gregorianas: Guilherme deveria devolver
as terras da sé que havia tomado; deveria aceitar a preeminência dos conselhos
espirituais de Anselmo e deveria reconhecer Urbano
II como papa (e
não Clemente III, o antipapa).[15]
As recusas de Anselmo ajudaram a melhorar sua posição na barganha enquanto os
termos eram discutidos com o rei, que estava profundamente relutante em aceitar
as condições impostas por ele. Guilherme cederia apenas à primeira.[16]
Alguns dias depois, Guilherme tentou voltar atrás até mesmo nisso e suspendeu a
investidura
de Anselmo, mas, pressionado pela população, foi obrigado a seguir adiante com
a nomeação. No fim, Anselmo e Guilherme concordaram que a devolução das terras
de Cantuária seria a única condição aceita.[17]
Finalmente os bispos
ingleses colocaram-lhe nas mãos o báculo e o
levaram para igreja para ser investido.[18]
Anselmo em seguida prestou homenagem a Guilherme e, em 25 de
setembro de 1093, recebeu de volta as terras de sua nova sé.[16]
Ele foi entronado no mesmo dia[19]
depois de receber a dispensa de suas obrigações na Normandia. Por fim, foi
consagrado arcebispo de Cantuária em 4 de dezembro.[16]
Tem se discutido
sobre se a relutância de Anselmo em assumir a sé teria sido ou não sincera.
Estudiosos como Southern defendem que sua preferência teria sido permanecer em
Bec.[20]
Porém, a relutância em aceitar postos importantes era um costume medieval.
Vaughn afirma que Anselmo não poderia ter expressado um desejo pela posição sem
correr o risco de ser visto como um carreirista ambicioso. Ela afirma ainda que
Anselmo percebeu a situação política e os objetivos de Guilherme e agiu no
exato momento que lhe daria a melhor condição de negociar pelos interesses de
sua futura sé e do movimento reformista.[carece de fontes] Por outro lado, a vida de eremita era uma
das opções que Anselmo considerou antes de aceitar o conselho do arcebispo de
Ruão e entrar para o mosteiro. William Kent acreditava que não havia razão para
suspeitar da sinceridade de sua resistência. Naturalmente atraído pela vida contemplativa, Anselmo não tinha atração
alguma por este tipo de cargo mesmo em períodos de paz e, assim, teria ainda
menos em tempos conturbados. Anselmo sabia bem o que o esperava na função.[21]
Arcebispo de Cantuária
·
Conflitos com Guilherme
II
Anselmo
continuou a combater por suas reformas e pelos interesses de Cantuária.[22]
Sua visão sobre a Igreja era de uma Igreja universal, com sua própria
autoridade interna, capaz de conter a visão de Guilherme de controle real sobre
o estado e sobre a Igreja.[23]
Por isso, tem sido descrito ora como um monge contemplativo ora como um homem
politicamente engajado, determinado a defender os privilégios da sé
episcopal de Cantuária.[24]
Um dos primeiros conflitos com Guilherme irrompeu já no seu primeiro mês. O rei
preparava-se para combater seu irmão mais velho, Roberto II Curthose, duque da Normandia,
e precisava de dinheiro.[25]
Anselmo estava entre os nobres de quem se esperava ajuda e ele ofereceu £500,
mas Guilherme recusou exigindo mais.[26]
Posteriormente, um grupo de bispos convenceu Guilherme a aceitar a quantia
original e foram até Anselmo, que afirmou ter doado o dinheiro aos pobres.
Neste episódio, Anselmo foi cuidadoso e conseguiu evitar tanto acusações de simonia quanto
mostrar-se um líder generoso.
As leis da
igreja determinavam que os bispos metropolitanos não poderia ser consagrados sem que
antes recebessem o pálio das mãos do papa. Anselmo, portanto, insistiu em ir à Roma para receber o
seu, mas Guilherme não autorizou. O antipapa Clemente III estava lutando contra
Urbano II, que havia sido reconhecido pela França e pela Normandia. Não parece que Guilherme fosse
partidário de Clemente, mas claramente desejava fortalecer seus próprios
interesses colocando-se na posição de decidir entre os dois rivais. Assim,
quando Anselmo pediu permissão para ir ver o papa, o rei afirmou que ninguém na
Inglaterra deveria reconhecer nenhum dos dois papas antes que ele, o rei, se
decidisse.[21]
Em 25 de fevereiro de 1095, os bispos e nobres da Inglaterra realizaram um
concílio no castelo de Rockingham para discutir o tema no qual os bispos se
alinharam ao rei, com Guilherme de Saint-Calais, o bispo de Durham, chegando
ao ponto de recomendar ao rei que depusesse Anselmo. Os nobres, por outro lado,
escolheram a posição de Anselmo e a conferência terminou num impasse.
Logo depois,
Guilherme enviou mensageiros em segredo para Roma.[22]
Eles convenceram Urbano a enviar um legado
(Gualtério de Albano) até o
rei levando consigo o pálio arcebispal[27]
e os dois imediatamente deram início às negociações secretas. Guilherme
concordou
No decorrer dos
dois anos seguintes, não se conhece nenhuma disputa aberta entre Anselmo e
Guilherme. Porém, o rei bloqueou todos os esforços do arcebispo em suas
reformas. A tensão finalmente explodiu em 1097, depois que Guilherme esmagou
uma revolta galesa[28]
Ele acusou Anselmo de ter lhe fornecido um número insuficiente de cavaleiros para a campanha e tentou multá-lo.
Anselmo decidiu seguir para Roma para se aconselhar com o papa, pois Guilherme
se recusava a cumprir sua promessa de ajudar na reforma da igreja,[23]
mas o rei não lhe permitiu. As negociações terminaram com Guilherme declarando
que se Anselmo partisse, tomaria de volta a sé de Cantuária e jamais o
receberia de volta como arcebispo. Por outro lado, se Anselmo resolvesse ficar,
seria multado e teria que jurar que jamais apelaria novamente a Roma: "Anselmo
recebeu a opções de se exilar ou de se submeter completamente".[29]
·
Primeiro exílio
Exilado, Anselmo
partiu para Roma em outubro de 1097. Guilherme imediatamente se apoderou das
receitas da sé e as manteve até morrer, embora Anselmo tenha permanecido
titular da sé.[30]
Ele escolheu o exílio para defender sua visão da Igreja universal, sublinhando
os pecados de Guilherme em relação a ela.[23].
Embora ele tenha de fato prestado homenagem a Guilherme, Anselmo a
desqualificou frente ao seu dever para com Deus e o papa. Ele foi recebido com
grandes honras por Urbano durante o cerco de Cápua, durante o
qual foi muito elogiado pelas tropas sarracenas
de Rogério I da Sicília (r. 1071-1101). Num
grande concílio provincial realizado em Bari em 1098, que
contou com a presença de 183 bispos, Anselmo recebeu a incumbência de defender
a cláusula Filioque e o uso do pão
ázimo durante a Eucaristia contra representantes da Igreja
Ortodoxa. Em 1099, Urbano renovou a proibição da investidura secular do
clero e do clero prestar homenagem a poderes seculares.[23]
No mesmo ano Anselmo se mudou para Lyon.[31]
·
Conflitos com Henrique I
Guilherme foi
morto em 2 de agosto de 1100. Seu sucessor, Henrique I, convidou Anselmo de volta,
escrevendo que se comprometia a ouvir os conselhos do arcebispo.[32]
Henrique cortejava Anselmo por que precisava de seu apoio para se consolidar no
trono, uma vez que o arcebispo poderia a qualquer momento declarar seu apoio ao
irmão mais velho de Henrique. Quando Anselmo retornou, Henrique exigiu que ele
lhe prestasse homenagem em relação às propriedades de
Cantuária[33]
e recebesse dele sua investidura em seu posto de arcebispo.[34]
Como o papado havia recentemente proibido o clero de fazer as duas coisas, a
relação de Anselmo com Henrique já começou em conflito.[33]
O rei se recusou
a desistir do privilégio desfrutado por seus predecessores e propôs que o tema
fosse levado ao papa. Duas embaixadas foram enviadas ao papa
Pascoal II sobre a legitimidade da investidura de Henrique; ambas receberam
a confirmação da ordem papal anterior. Neste ínterim, Anselmo ajudou Henrique,
que estava ameaçado pela invasão de seu irmão, Roberto
Curthose, e Anselmo publicamente apoiou-o, convencendo os barões ainda
indecisos e ameaçando Curthose com a excomunhão.[35]
Na festa de São Miguel de
1102, Anselmo realizou um concílio em Londres no qual
ele proibiu o casamento e o concubinato aos membros das ordens
sagradas[36]
(além de condenar a simonia e reformando os regulamentos de sobriedade
e vestuário do clero).[35]
Ele estava entre os primeiros a opinar publicamente contra o tráfico de escravos em 1102, num concílio na
igreja de São Pedro em Westminster, e conseguiu aprovar uma resolução contra a
prática de vender homens como gado.[37]
Por outro lado,
Henrique concedeu a Anselmo autoridade sobre toda a Igreja na Inglaterra e
concordou em obedecer o papa. Porém, como Pascoal havia reafirmado as regras
sobre a investidura e as homenagens seculares, Henrique se voltou novamente
contra Anselmo.[35]
Em 1103, o próprio arcebispo e um enviado real, Guilherme Warelwast,
partiram novamente para Roma.[38]
Furioso, Pascoal excomungou os bispos investidos por Henrique.
·
Segundo exílio
Anselmo se
refugiou em Lyon depois disso e aguardou os próximos passos de Pascoal. Em 26
de março de 1105, o papa excomungou o principal conselheiro de Henrique,
Roberto de Meulan, por ter convencido Henrique a continuar com as investiduras
seculares, os prelados investidos por Henrique e outros conselheiros,[39]
ameaçando o próprio rei com o mesmo destino.[40]
Em abril, Anselmo ameaçou excomungá-lo pessoalmente, provavelmente para forçar
a mão de Henrique nas negociações.[41]
Como resposta, o rei arranjou um encontro com Anselmo e eles conseguiram chegar
numa solução de compromisso em Laigle em 22 de julho de 1105. Parte do acordo era
que as excomunhões de Roberto e de seus associados fossem revogadas (dado que
eles agora aconselharam o rei a obedecer o papa); Anselmo fê-lo por sua própria
autoridade, um ato que depois teve que explicar a Pascoal.[42][43]
Outras condições do acordo foram que Henrique deveria abandonar a investidura
secular se Anselmo obtivesse de Pascoal permissão para que clérigos prestassem
homenagem aos seus nobres; que as receitas da sé de Cantuária fossem devolvidas
a Anselmo; e que os sacerdotes fossem proibidos de casar. Anselmo então insistiu
em ter o acordo de Laigle sancionado por Pascoal antes de aceitar voltar para a
Inglaterra. Por carta, Anselmo também pediu ao papa que aceitasse o compromisso
de prestar homenagem ao rei, pois seria um pequeno preço a pagar por uma
vitória maior, o fim do conflito sobre as investiduras seculares.[44]
Em 23 de março de 1106, Pascoal escreveu a Anselmo aceitando a solução, embora
ambos vissem o acordo como um compromisso temporário e pretendiam continuar
pressionando pelas reformas gregorianas, incluindo o fim das
homenagens.[45]
Mesmo depois
disso, Anselmo continuou se recusando a voltar para a Inglaterra.[46]
Henrique viajou para Bec e encontrou-se com ele em 15 de agosto de 1106. Lá, o
rei fez mais algumas concessões, restaurando a Anselmo todas as igrejas que
havia tomado. Ele prometeu ainda que nada mais seria tomado das igrejas, que
prelados que haviam pago seu controverso imposto (que havia começado como um
imposto sobre clérigos casados)[47]
seriam isentados de impostos por três anos e, finalmente, que tudo o que havia
sido levado de Cantuária durante o exílio de Anselmo seria devolvido. Anselmo
finalmente aceitou voltar depois de reforçar ainda mais a posição da igreja
frente à do rei.
Já em
·
Motivações
Vaughn
interpreta as motivações de Anselmo no conflito das investiduras como avançando
os interesses da sé de Cantuária em vez dos interesses da Igreja como um todo.[51]
Outros historiadores entendem que Anselmo estava alinhado com o papado contra
os monarcas ingleses, mas Vaughn afirma que ele teria agido por conta própria,
como um terceiro pólo da controvérsia, com o objetivo final de promover a
primazia da Arquidiocese de Cantuária. A visão de Anselmo sobre esta primazia
seria demonstrada em seu capítulo de c. 3 de setembro de
1101, no qual se autodenominou "arcebispo de Cantuária e primaz da
Grã-Bretanha e Irlanda e vigário do sumo-pontífice Pascoal".[35]
No final de sua
vida ele havia assegurado a primazia de Cantuária em relação ao papado e
libertado Cantuária de sua submissão ao rei inglês.[48]
Além de assegurar a primazia sobre os bispos ingleses, Anselmo também deu
início ao controle permanente sobre os bispos galeses e conseguiu exercer uma
poderosa influência sobre os irlandeses durante sua vida.[52]
Anselmo conseguiu forçar Pascoal a enviar-lhe o pálio para o arcebispo de Iorque para que o novo arcebispo
fosse forçado a jurar-lhe obediência antes de recebê-lo.[53]
Em seu leito de morte, Anselmo anatemizou
todos os que não reconheceram a primazia de Cantuária sobre Iorque, como Tomás II de Iorque,[52]
um ato que forçou Henrique a ordenar que Tomás o fizesse.
Obras
Anselmo
dedicou-se à filosofia,
aplicando a razão em vez do apelo à autoridade das Escrituras ou da patrística
para estabelecer as doutrinas da fé cristã. Estilisticamente, os tratados de
Anselmo assumem duas formas, diálogos, de cunho pedagógico,[54]
e meditações. Seu grande predecessor, João Escoto Erígena, foi mais especulativo e místico em suas obras.
O mote de Anselmo era "fides
quaerens intellectum" ("fé em busca de entendimento") que,
para ele, significava "um ativo amor de Deus em busca de um
conhecimento mais profundo de Deus".[55]
Ele escreveu "Neque enim quaero intelligere ut credam, sed credo ut intelligam. Nam et hoc
credo, quia, nisi credidero, non intelligam." ("Nem busco
entender para que possa acreditar, mas acredito que possa entender. Por isso,
também, acredito que, a não ser que eu primeiro acredite, não serei capaz de
entender"). Esta frase foi possivelmente inspirada por Santo
Agostinho ("Dez Homilias sobre a I João", tratado XXIX sobre João 7:14-18, §6): "Portanto,
não busque entender para que acredite, mas acredite para possa ser capaz de
entender".[56]
Anselmo defendia que a fé precede a razão e que a razão pode expandir a fé.[57]
A obra-prima
sobre a teoria do conhecimento de Anselmo é o tratado "De
Veritate", no qual afirma a existência de uma verdade
absoluta da qual todas as verdades participam. Esta verdade absoluta,
argumenta ele, é Deus, que é a base ou princípio de tudo e do pensamento. A
visão de mundo de Anselmo era, grosso modo, a do neoplatonismo,
que herdou de seu grande influenciador, Santo
Agostinho, assim como de Dionísio Areopagita, possivelmente, de Escoto.[58]
Ele também herdou sua forma racionalista de pensar de Aristóteles
e de Boécio.
·
Provas teístas
Ver artigo
principal: Argumento
ontológico
- Immanuel
Kant
comentou e criticou a obra de Anselmo.
O "Monológio",
escrito em 1077, inclui uma defesa da existência de Deus, mas também muitas discussões
sobre os atributos divinos e sua economia, além de algumas
sobre a mente humana. A obra começa assim:
“Se alguém não sabe, seja por que
não ouviu ou por que não acredita, que há uma natureza, suprema sobre todas as coisas
existentes, que sozinha é auto-suficiente em sua felicidade eterna, que através
de sua bondade onipotente concede e faz com que todas as coisas existam ou
tenham algum tipo de bem-estar, e uma grande quantidade de outras coisas que
devemos acreditar sobre Deus ou sua criação, penso que este devia pelo menos se
convencer da maior parte destas coisas pela simples razão se for moderadamente
inteligente.” — Anselmo de Cantuária, Monológio [55]
Nos primeiros
capítulos, apresenta a defesa da bondade em todas as coisas que só podem
existir pela presença da bondade "em si". A prova do Monológio
argumenta a partir da existência de muitas coisas boas em direção a uma unidade
da bondade, um única coisa através da qual todas as outras coisas são boas.[54]
Ele continua explicando que "coisas" são chamadas de "boas"
em graus e formas variadas que seriam impossíveis se não houvesse algum padrão
absoluto e alguma bondade "em si", da qual toda bondade relativa é
parte. O mesmo vale para adjetivos como "grande" ou
"justo", por meio do qual coisas tem uma certa medida de grandeza e
justiça. Anselmo usa este raciocínio para afirmar que a própria existência de
coisas seria impossível sem algum único Ser através do qual elas passam a
existir. Este Ser absoluto, esta bondade, justiça e grandeza, é Deus. Anselmo
não se satisfaz completamente com este raciocínio, porém, por que começa a
partir de bases a posteriori, ou seja, é um raciocínio indutivo e não uma
dedução
como preferia.[55]
Em seu Proslógio,
Anselmo tentou encontrar um único argumento que não precisava de nada além de
si próprio como prova, que seria suficiente em si mesmo para mostrar que Deus
realmente existe; que ele é a bondade suprema dependente de nada mais, mas do
qual tudo depende para existir ou para seu bem-estar. Estudiosos medievais
chamaram-no de "ratio Anselmi" ("argumento de
Anselmo"). Immanuel Kant posteriormente chamou-o de "argumento ontológico".[55]
Anselmo definia sua crença na existência de Deus utilizando a frase "aquele
que não se pode conceber nada que seja maior". Ele argumentava que, se
"aquele que não se pode conceber nada que seja maior"
existisse apenas no intelecto, ele próprio não seria "aquele que não se
pode conceber nada que seja maior", uma vez que se pode conceber que
exista na realidade, que é maior que o intelecto apenas. Segue daí, segundo
Anselmo, que "aquele que não se pode conceber nada que seja maior"
deve existir na realidade. A maior parte do "Proslógio" é
dedicada à tentativa de Anselmo de estabelecer a identidade "daquele
que não se pode conceber nada que seja maior" como sendo Deus,
estabelecendo assim que Deus existe de fato.[55]
A prova
ontológica de Anselmo tem sido objeto de controvérsia desde que foi publicada
pela primeira vez na década de 1070. Ela foi combatida na época pelo monge Gaunilo em sua "Liber pro
Insipiente", onde argumentava que humanos não podiam passar do intelecto
para a realidade. A resposta de Anselmo veio em sua "Responsio".
A crítica de Gaunilo foi depois repetida muitas vezes por filósofos
posteriores, entre eles Tomás de Aquino e Kant. Anselmo escreveu diversos
outros argumentos para a existência de Deus baseados em argumentos cosmológicos e teleológicos.[59]
Outras obras
Em suas demais
obras, Anselmo luta para afirmar a base racional das doutrinas cristãs da criação e da Trindade, que ele discutiu primeiro
afirmando que seres humanos não poderiam conhecer Deus em si, mas apenas
através de uma analogia.
A que ele utilizou foi a da auto-consciência do homem.
A peculiar dupla
natureza da consciência - memória e inteligência - representam a relação do Pai com o Filho. O
amor mútuo entre os dois, que procede de uma relação que eles mantém entre si,
é o Espírito Santo. As demais doutrinas teológicas sobre
o homem, como o pecado original e o livre
arbítrio, foram desenvolvidas no "Monológio" e em outros
tratados.
·
Cur Deus Homo e a
visão da satisfação na teoria da Expiação
A visão da satisfação na teoria da
Expiação foi formulada por Anselmo em seu obra "Cur Deus Homo"
("Por que Deus foi feito Homem?").[60]
Ele tentou ali explicar a necessidade racional do mistério cristão da expiação. O ponto central do argumento é
que o ser humano pode compensar pelo pecado humano contra Deus, mas sendo a
compensação impossível para qualquer ser humano individual, ela só poderia ser
feita por Deus. Um ato assim só seria possível para Jesus
Cristo, o Filho, que é tanto Deus quanto homem. A expiação é
alcançada através da morte de Cristo, que tem valor infinito. Em última
instância, na interpretação de Anselmo sobre a expiação, a justiça e a
misericórdia divina em seus sentidos mais amplos se mostram completamente
compatíveis.[54]
De acordo com
esta visão, o pecado
seria um débito frente à justiça divina que precisa ser pago de alguma forma.
Assim, nenhum pecado, segundo Anselmo, pode ser perdoado sem uma devida
"satisfação". Porém, o débito incorreto é algo muito maior que um ser
humano é capaz de pagar. Todo serviço que uma pessoa pode oferecer a Deus já
está alienado por conta de outros débitos para com Deus.[60]
A única forma pela qual se pode dar a satisfação - para que o homem se livre de
seus pecados - seria pela vinda de um "Redentor"
que fosse também tanto homem quanto Deus. Ele próprio teria que ser livre de
todo pecado e, portanto, não ter nenhum débito incorrido. Sua morte seria então
maior do que todos os pecados incorridos pela humanidade e corresponderia a uma
superabundante "satisfação" à justiça divina.
De forma
similar, a visão da satisfação de Anselmo tem sido utilizada por teólogos
modernos em suas críticas genealógicas da teologia cristã. George Foley, por
exemplo, um professor de assistência pastoral, escreveu em 1908 que apesar de a
afirmação "tradicional" da doutrina de Anselmo inspirou o desenvolvimento
de muitas vidas devotas e consagradas,
seu poder vem do fato que ela é uma testemunha "emocional" da
realidade fundamental do amor e sacrifício encarnado. Assim, Foley alega que a
doutrina não é uma teoria positiva (que afirma, em oposição a uma que nega) e
que provocou "graves prejuízos" nos séc. seguintes.[61]
Embora Foley não cite nenhum exemplo claro do tal "grave prejuízo",
ele relaciona a teoria de Anselmo com a teoria da satisfação da Reforma. Ela foi aceita como
"ortodoxa" por diversas correntes protestantes
e continuou a sê-lo até o final do séc. XIX. Foley acredita que "A
adoção de Anselmo de uma interpretação puramente objetiva da obra de Cristo e
sua assunção de penetrar - e capacidade de fazê-lo - nas relações esotéricas da
Trindade, fizeram dele o principal responsável pela bisbilhotação intrusiva nos
mistérios divinos e pela familiaridade confiante com a porção não revelada da verdade que nasceu
na tirania dogmática tão comum nas igrejas protestantes.".[62]
Anselmo negou a
crença que no que atualmente chamamos de Imaculada Conceição,[63]
embora sua forma de pensar tenha lançado as bases para o desenvolvimento da
doutrina no ocidente. Em "De virginali conceptu et de peccato
originali" ("Do Conceito de Virgindade e o Pecado
Original"), Anselmo propôs dois princípios que se tornariam fundamentais
na discussão. O primeiro é que seria adequado que Maria fosse tão pura que nenhum outro ser mais
puro pudesse ser imaginado, com exceção de Deus. O segundo, que abriu caminho
para o dogma no
futuro, foi sua compreensão sobre o pecado
original.[64]
Anselmo afirmou que o pecado original seria nada mais do que a natureza humana
desprovida da justiça divina e que seria transmitida (no nascimento) por que os
pais não podem conceder a justiça divina por que eles próprios não a têm. O
pecado original seria portanto a transmissão da decadência da natureza humana.
Em contraste, os contemporâneos de Anselmo defendiam que a transmissão do
pecado original teria relação com a natureza lasciva
do ato
sexual. Anselmo foi o primeiro a separar o pecado original do desejo sexual.
Influência
As obras de
Anselmo foram copiadas e disseminadas ainda durante a sua vida e exerceram
grande influência sobre os escolásticos
posteriores como Boaventura, Tomás de Aquino, João Duns Escoto e Guilherme de Ockham.[54]
Seu tratado sobre a processão do Espírito Santo ajudou a
guiar as especulações escolásticas sobre a Trindade, "Cur Deus Homo"
iluminou o caminho para a teoria da Expiação e sua obra antecipou muito do
que seria discutido nas futuras controvérsias sobre o livre
arbítrio e a predestinação.[21]
·
Dilecto dilectori
Alguns autores
já relataram que Anselmo teria escrito muitas cartas para monges, parentes do
sexo masculino e outros contendo apaixonadas expressões de apego e afeição.
Estas cartas eram tipicamente endereçadas a "dilecto dilectori",
que se pode traduzir como "ao querido amado". Apesar de ser
amplamente reconhecido que Anselmo estava completamente comprometido com o
ideal monástico do celibato, alguns estudiosos, incluindo Brian P. McGuire[65]
e John
Boswell[66]
consideraram estes textos como expressão de uma inclinação homossexual.[67]
Outros, como Glenn Olsen[68]
e Richard Southern os descrevem como representativos
de uma afeição "totalmente espiritual" "nutrida por um
ideal incorpóreo".[69]
Reconhecimento
O aniversário da
morte de Anselmo, em 21 de abril, é celebrado pela Igreja Católica, pela maior parte da Comunhão Anglicana e por algumas correntes do luteranismo.
Sua canonização foi solicitada por Tomás
Becket em 1163 e é possível que tenha sido formalmente canonizado em algum
momento antes da morte deste em 1170, mas nenhum registro oficial sobreviveu,
apesar de, a partir daí, Anselmo ter sido incluído no rol dos santos em
Cantuária e em outros lugares. Alguns estudiosos defendem que a canonização de
Anselmo só teria sido executada em 1494 pelo papa
Alexandre VI Bórgia.[70][71]
Foi proclamado Doutor da Igreja em 1720 por Clemente
XI.[72]
Em 21 de abril de 1909, 800 anos depois de sua morte, São Pio X
emitiu uma encíclica, "Communium Rerum",
elogiando Anselmo, sua carreira eclesiástica e suas obras. Seu símbolo na hagiografia
é um navio que representa a independência espiritual da Igreja.
Ver também
· Precedido por: Lanfranco de Cantuária
· Arcebispos de Cantuária 38.º
· Sucedido por: Raul de Escures (em 1114)
Referências
1.
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Ligações externas
· Este artigo
incorpora texto do artigo «Anselm» (em inglês) da Encyclopædia
Britannica
(11.ª edição), publicação em domínio
público.
· Thomas Williams. «Saint Anselm» (em inglês). Stanford
Encyclopedia of Philosophy
· «St. Anselm of Canterbury (1033—1109)» (em inglês). Internet Encyclopedia of Philosophy
· Christoph Zimmer (2005). «Logik der Ratio Anselmi» (PDF) (em inglês)
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