Beowulf
é um poema épico, escrito em língua anglo-saxã, por autor desconhecido,
possivelmente no séc. VIII, cujo único manuscrito existente está datado para
ca. 1 000. Escrito em 3182 linhas, com o emprego de aliteração, é o poema
mais longo do pequeno conjunto da literatura anglo-saxã, e um marco da
literatura medieval. Aborda eventuais acontecimentos e personagens da
Dinamarca, e em menor grau do sul da Suécia, no séc. VI, tendo como figura
central o lendário Beowulf. [1] [2] [3]
[4]
Apesar de haver
sido escrito na atual Inglaterra, a história se refere a eventos ocorridos na
Escandinávia, mais especificamente nas atuais Suécia e Dinamarca. O poema está
centrado nos feitos de Beowulf, herói da tribo dos gēatas - talvez
identificáveis com os Gautas da Gotalândia
(Suécia) ou os Gutas da ilha da Gotlândia
- que com sua excepcional força e coragem livra os dinamarqueses da ameaça de
dois monstros diabólicos e, já coroado rei do seu povo, combate e mata um
dragão, numa batalha que acaba por custar-lhe a vida. [5] [6]
O único
manuscrito existente de Beowulf data do séc. XI, mas acredita-se que o
poema original possa ter sido escrito antes. A narrativa é lendária, mas alguns
eventos e personagens possivelmente históricos dos séculos V e VI são também
referidos no texto. [1]
História
O poema narra as
aventuras de Beowulf, herói com força sobre-humana, originário da tribo dos gēatas.[3]
Ao ouvir as desventuras que afligem a corte do rei Rodogário, na Dinamarca, Beowulf
viaja com um pequeno grupo de guerreiros a esse país, onde é recebido pelo rei
em Heorot, o grandioso salão da corte. Logo ao chegar o herói se oferece para
livrar Rodogário e seu povo dos ataques de Grendel, uma criatura monstruosa,
descrita como descendente do clã de Caim e verdadeiro símbolo do mal encarnado,
que devora homens inteiros. O herói vence e mata Grendel em duelo, utilizando
como arma apenas as suas mãos nuas. Seguidamente, a mãe de Grendel, também ela
uma criatura monstruosa, vem vingar a morte do filho com novas carnificinas.
Beowulf segue seu rastro até uma caverna submarina, localizada num lago
habitado por monstros aquáticos, onde a combate e vence com uma poderosa
espada, criada para matar gigantes. Depois desta aventura, Beowulf e seus
guerreiros retornam por mar à terra dos gautas. [7]
O relato então é
cortado por uma longa elipse temporal e encontramos o mesmo Beowulf, já idoso e
rei entronado do seu país. A chegada de Beowulf ao trono é explicada
rapidamente: o rei Higelac morre numa batalha contra os frísios,
sendo sucedido por seu filho Heardred. Este é mais tarde morto numa batalha
contra as tropas suecas do rei Onela, deixando vazio o trono gauta, que é
ocupado por Beowulf. [7]
Cinquenta anos
após ser entronado, Beowulf necessita livrar seu reino de um dragão, que fora
despertado por um servo que roubara uma taça do seu tesouro ancestral, guardado
sob a terra numa mamoa
(um monte funerário feito pelo homem). Beowulf, munido de uma espada (a espada
que reza a lenda é a de Excalibur que retornou a Avalone ficou com um formato
diferente) e um escudo de ferro, entra na caverna onde se encontra o tesouro e
o dragão cuspidor de fogo, travando com ele uma feroz batalha. Viglafo, o mais
fiel dos seus guerreiros, entra na caverna e ajuda o rei a matar a criatura,
derrubada por uma estocada fatal de Beowulf. Esta termina sendo a última
aventura do herói, que morre devido às terríveis feridas causadas pelo monstro.
O poema termina com o funeral de Beowulf, que é enterrado com o tesouro numa
mamoa num monte junto ao mar, de onde os navegantes a pudessem ver. [7]
·
Interpretação
O poema reflete
a época violenta em que foi escrito, cheio de sangrentas batalhas, em que os
valores mais estimados são a honra, a coragem e a fortaleza. Outro valor
central na época e refletido no texto é a lealdade e respeito entre os
guerreiros vassalos e seu rei. Em recompensa pelos serviços prestados pelos seus
guerreiros, o soberano lhes oferece riquezas (jóias, ouro, armas, cavalos) e
terras. No poema, Beowulf demonstra frequentemente sua extrema lealdade ao rei
dinamarquês Rodogário e os reis gautas Higélaco e Heardred.
Vários
personagens, tribos e acontecimentos do poema revelam que o relato se passa no séc.
VI. Personagens semilendários como os reis Rodogário e Higélaco (mas não
Beowulf), aparecem em crônicas e sagas escandinavas, e a batalha contra os frísios em
que morre Higélaco é possivelmente histórica, coincidindo com uma batalha
travada no ano de 516 referida por Gregório de Tours. Beowulf, porém, deve
ser visto como um poema criado para o entretenimento e não como crônica histórica.
Na época dos
eventos narrados no poema os povos escandinavos eram ainda pagãos, mas o texto
contém algumas referências a Bíblia e a Jesus Cristo, sem dúvida pelo fato de
que os escribas eram já cristãos. Muitos aspectos da narrativa são, porém, mais
condizentes com valores germânicos pagãos. Beowulf entra nas suas batalhas
convencido de que não é apenas sua capacidade que decide o resultado, mas
também a força sobrenatural do destino, um aspecto típico das sociedades
germânicas guerreiras da época. Em outros trechos, porém, o narrador atribui o
resultado favorável das batalhas à vontade de Deus.
Manuscrito e autoria
O único
manuscrito de Beowulf, escrito por volta do ano 1000, é parte de um
códice maior, denominado Cotton Vitellius A.XV e conservado atualmente
na Biblioteca Britânica,
A análise do
manuscrito revela que o mesmo foi transcrito por dois escribas, um escriba
"A" (do início até a linha 1939) seguido de um escriba "B",
cuja linguagem é considerada mais arcaica. Não há consenso sobre quando o poema
original terá sido composto, variando as opiniões entre o séc. VIII até o
início do séc. XI, época em que o manuscrito foi transcrito. Alguns estudiosos
acreditam que Beowulf era originalmente uma obra recitada por poetas, passada
de geração em geração oralmente antes de ser passado ao papel. Outros creem que
o poema é criação de um ou poucos autores já perto do séc. XI.
Forma poética
Beowulf, como
outros poemas anglo-saxões, não faz uso da rima, mas está escrito em versos
aliterativos, em que a primeira metade de cada verso está ligado a segunda metade
por sílabas de som similar. Por exemplo:
Oft Scyld Scefing
\\ sceaþena þreatum
monegum mægþum
\\ meodosetla ofteah,
Tradução
aproximada (mead = antiga bebida nórdica):
Frequentemente
Scyld, o Sciefing \\ de muitos inimigos
e de muitas tribos
\\ a mesa de mead destruiu,
Outra
característica típica do poema é presença de kennings,
uma figura de linguagem empregada para referir-se poeticamente a uma pessoa ou
uma coisa. O mar, por exemplo, é referido como o "caminho da baleia",
e um rei pode ser chamado de "portador da coroa".
Personagens principais
- Beowulf - Herói gēata
que vive em busca de aventuras que imortalizem seu nome. Finalmente é
coroado rei dos gautas
- Rodogário - Rei dinamarquês
cujo reino é acossado pelos monstros, posteriormente mortos por Beowulf
- Higélaco - Tio de
Beowulf e rei dos gēata. Ao morrer em batalha, seu reino é herdado
por seu filho e depois por Beowulf
- Grendel - Criatura
sanguinária, primeiro oponente de Beowulf. Ele ataca o salão de festas de
Heoroto sempre que ali há uma comemoração
- Unferdo - Guerreiro
de Rodogário retratado como invejoso e covarde. O oposto de Beowulf
- Mãe de
Grendel
- Um monstro fêmea que jura vingança aos dinamarqueses ao ver seu filho
morto por Beowulf
- Viglafo - O mais
fiel dos guerreiros de Beowulf, ajuda-o a matar o dragão
Traduções
As primeiras
traduções de trechos de Beowulf foram realizadas no início do séc. XIX
para o inglês moderno (1805 e 1814). A primeira tradução completa, apesar de
conter muitos erros, foi feita para o latim em 1815, e a primeira tradução em
verso foi para o dinamarquês em 1820. Isso foi seguido pela primeira tradução
(em prosa) completa ao inglês em 1837, por John Kemble. A partir de então
muitas outras versões foram publicadas. Uma das mais festejadas é a versão
poética de Seamus Heaney (2000), escritor irlandês Premio Nobel
de Literatura.
Em língua
portuguesa há duas traduções: a primeira, tendo como base o texto original em
inglês arcaico e textos de duas das edições em inglês moderno, é de Ary
Gonzalez Galvão, com introdução e notas. Posteriormente foi publicada uma nova
tradução em versos, bilíngue, de Erick Ramalho, também com introdução e notas.
- ANÔNIMO. Beowulf.
Trad., intro. e notas de Ary Gonzalez Galvão. São Paulo: Hucitec, 1992 [8]
- ANÔNIMO. Beowulf.
Trad., intro. e notas de Erick Ramalho. Belo Horizonte: Tessitura, 2007
Influência
Este épico
poema, um marco na literatura medieval, serviu como uma das fontes de
inspiração para outras obras literárias, incluindo a renomada saga do escritor
inglês J. R. R. Tolkien, O Senhor dos Anéis. Também foi várias
vezes adaptada ao cinema, sendo a produção com maior êxito, o longa Beowulf,
lançado em 2007, dirigido por Robert Zemeckis e com o roteiro de Neil Gaiman e
Roger Avary, numa realização conjunta da Paramount Pictures, da Shangri-La
Entertainment e da Warner Bros. Studios. Todo o filme foi gravado a
partir da tecnologia de uma câmera especial, de captura de movimento. O filme contou com o
ator Ray Winstone no papel principal, além de Anthony Hopkins como Rei
Rodogário e Angelina Jolie como a sedutora monstro-fêmea, mãe de Grendel. Beowulf
teve um orçamento de 150 milhões de dólares e obteve uma arrecadação total de
US$ 196,3 milhões.[9]
Ver também
- Beowulf
(herói)
- Beowulf
(2007)
- Beowulf & Grendel (2005)
- Beowulf
(1999)
- Fontes da História Nórdica
- Fontes da História da Suécia
Referências
1. «Beowulf» (em
inglês). Encyclopædia Britannica
(Enciclopédia Britânica). Consultado em 9 de novembro de 2018
2. «Cotton MS Vitellius A XV» (
3. Vinicius
Tivo Soares e Jaime Estevão dos Reis. «REFLEXÕES SOBRE O
POEMA ÉPICO BEOWULF» (PDF). VIII Congresso
Internacional de História. Consultado em 10 de novembro de 2018
4. João
Bittencourt de Oliveira. «Beowulf: O herói,
os monstros e a Bíblia» (PDF). XXII CONGRESSO NACIONAL
DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA. Consultado em 14 de novembro de 2018
5. Finn
Stefánsson. «Bjovulf» (em
dinamarquês). Den Store Danske Encyklopædi (Grande
Enciclopédia Dinamarquesa). Consultado em 9 de novembro de 2018
6. David Mackenzie Wilson. «The Vikings and Their Origins: Scandinavia in the First
Millennium» (em
inglês). Livros Google. Consultado em 10
de novembro de 2018
7. Orrling,
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Estocolmo: Museu Histórico de Estocolmo.
p. 18. 328 páginas. ISBN 91-7192-984-3
8. Tradução
de Ary Gonzalez Galvão. «Beowulf». Livros
Google. Consultado em 10 de novembro de 2018
9. «Beowulf (2007) -
Box Office Mojo» (em inglês). Consultado em 18
de março de 2014
Ligações externas
- Versão simples de Beowulf em inglês moderno
(prosa)
- Texto de Beowulf em Inglês antigo
- Versão digitalizada do manuscrito
Fontes (em inglês)
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External links
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Media related to Beowulf at Wikimedia Commons
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Works related to Beowulf at Wikisource
·
Quotations related
to Beowulf at Wikiquote
·
Full digital facsimile of the manuscript on the British
Library's Digitised Manuscripts website
·
Electronic Beowulf, ed. by Kevin
Kiernan, 4th online edn (University of Kentucky/The British Library, 2015)
·
Beowulf manuscript
in The British Library's Online Gallery, with short summary and podcast
·
online text (digitised from
Elliott van Kirk Dobbie (ed.), Beowulf and Judith, Anglo-Saxon Poetic
Records, 4 (New York, 1953))
·
Beowulf introduction Article introducing various translations and
adaptations of Beowulf
·
Beowulf public domain audiobook at LibriVox
·
The tale of Beowulf (Sel.3.231); a digital edition of the proof-sheets with manuscript notes and
corrections by William Morris in Cambridge Digital
Library
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