As canções de gesta (em francês chansons de geste), são um conjunto de poemas épicos surgidos no raiar da literatura francesa, entre os séculos XI e XII.
Essas canções
exerceram grande influência na literatura medieval, tanto em sua região de
origem como por toda a Europa, e, mesmo com o fim de Idade Média, sua
influência continuou a sentir-se na literatura e até no folclore.
Características
· Forma poética
Uma canção de
gesta é um longo poema épico narrativo medieval que celebra os feitos de heróis
do passado[1][2].
O principal manuscrito d'A Canção de Rolando, a mais antiga
canção de gesta preservada, tem um total de 4002 versos, mas algumas canções
podiam chegar a dezenas de milhares de versos[2].
Em geral as mais antigas possuem versos de dez sílabas com uma pausa (uma cesura)
depois da quarta ou quinta sílaba. Inicialmente as canções não utilizavam a rima,
e sim a assonância, ou seja, a repetição do som das vogais nos
versos de uma estrofe. Os versos estão organizados em estrofes de tamanho
variável chamadas laisses
· Origens
Como indica o
nome, as canções de gesta foram pensadas para serem cantadas com acompanhamento
musical[3].
A audiência era composta por pessoas de variados estamentos sociais, em geral
analfabetas, nas vilas, cidades e na cortes dos nobres da época. As canções
eram recitadas por cantores profissionais - jográis e menestréis -
e enquanto alguns deles limitavam-se a repetir as composições tradicionais,
outros criavam novas canções ou adicionavam novos episódios às canções
conhecidas, adaptando-as às diferentes audiências e garantindo o interesse em
suas recitações.
Não se sabe
exatamente como surgiram as canções de gesta. A mais antiga conhecida, o
manuscrito de Oxford d'A Canção de Rolando, data de cerca de 1100, mas
apresenta um tal refinamento e complexidade em sua composição que é provável
que já bem antes desta data houvesse uma tradição de canções do mesmo tipo.
· Temática
Os temas de
quase todas as canções estão ligadas à época da dinastia carolíngia (séculos VIII e IX),
especialmente ao rei franco Carlos Magno e seus paladinos e
nobres, e suas lutas contra os pagãos e contra os muçulmanos[4].
Assim, a maioria das canções fazem parte da chamada Matéria de França da literatura medieval.
Durante a Idade
Média, Carlos Magno e, em menor medida, governantes carolíngios como Luís
o Piedoso e Carlos Martel, foram vistos como campeões da
Cristandade, que lutaram e impediram que a Europa inteira fosse conquistada
pelos mouros e sarracenos. Nos séculos XI e XII, a época em que surgem as
canções de gesta, a lembrança de Carlos Magno ainda era muito viva[3],
e a Europa sentia-se cercada pela ameaça muçulmana, que dominava a Península
Ibérica a Ocidente e a Terra Santa a Oriente. Assim, no contexto das Cruzadas e da Reconquista,
é natural que as canções de gesta tratassem majoritariamente do tema da guerra
santa contra os muçulmanos[4].
Muitos dos
heróis das canções são personagens históricos que guerrearam contra mouros e
sarracenos, como Carlos Magno, os nobres francos Rolando e Guilherme de Orange, o conquistador de
Jerusalém Godofredo de Bulhão e, na Península Ibérica, o Cid
Campeador. Junto a esses personagens verídicos há vários personagens
puramente fictícios, alguns monstruosos, como o gigante Ferrabrás,
e outros com poderes mágicos como o mago Maugis e o cavalo Baiarte. Da mesma forma, enquanto que
muitos dos episódios das canções estão baseados em eventos históricos, como a Batalha de Roncesvales (788) ou o Cerco de Jerusalém (1099), a maioria está
baseada em lendas ou na imaginação do autor. Também é frequente que uma batalha
seja resolvida por intervenção divina, o que é uma forma pela qual o autor
mostra que a razão estava do lado dos cristãos.
Ciclos
Dependendo da
temática, as 80 canções de gesta francesas conhecidas podem ser agrupadas em
grupos ou ciclos. Já em 1215, um escritor de canções, Bertrand de Bar-sur-Aube, classificou-as
de acordo à temática em três grupos[2][3];
o Ciclo do rei (dedicado a Carlos Magno e seus paladinos), o Ciclo de
Doon de Mayence (que coincide em grande parte com o que atualmente é
chamado o Ciclo dos barões rebeldes) e o Ciclo de Garin de Monglane
(relacionado a personagens relacionados ao conde Guilherme de Orange).
Atualmente reconhecem-se alguns outros ciclos, mas a classificação de Bertrand
continua sendo usada. Os mais importantes ciclos são:
Ciclo do Rei
Agrupa os vários
poemas em que os personagens principais são o rei franco Carlos
Magno e seus paladinos[5].
Em algumas os sucessores imediatos de Carlos também são personagens. O tema
mais importante é a luta de Carlos e seus guerreiros, como Rolando e Oliveiros,
contra os muçulmanos. Exemplos importantes:
· A
Canção de Rolando
(
· A Peregrinação de Carlos Magno (Pèlerinage de
Charlemagne, c. 1140): trata de uma peregrinação fictícia de Carlos Magno e
seus paladinos a Jerusalém - onde conseguem várias relíquias - e Constantinopla.
· Ferrabrás (Fierabras,
c. 1170): trata da luta entre o rei Carlos e seus paladinos contra o rei
muçulmano Balão e seu filho gigantesco, Ferrabrás. No final, Oliveiros vence
Fierabrás e este converte-se ao Cristianismo junto a sua irmã, Floripes, que
também é um dos personagens principais.
· Aspremont (c. 1190): a Europa é invadida pelo rei
sarraceno Agolant e seu filho Helmont. No sul da Itália, Carlos Magno e seus
paladinos lutam e vencem os invasores. Na batalha mais decisiva, o jovem
Rolando vence Helmont e recebe de Carlos Magno a espada Durindana e o cavalo Vigilante.
· Chanson de Saisnes (Canção dos Saxões, c.
1200): primeira canção com autor conhecido, o escritor Jean Bodel. Trata das
campanhas militares de Carlos Magno contra os saxões, que realmente
ocorreram no séc. VIII.
Ciclo de Guilherme d'Orange
Este ciclo de
vinte e quatro canções desenvolve-se ao redor de Guilherme de Orange, conde
de Tolosa em tempos carolíngios, que lutou contra os muçulmanos e terminou
seus dias numa abadia como santo[6].
O ciclo também é chamado Ciclo de Garin de Monglane, nome de um
ancestral lendário de Guilherme[3].
· Canção de Guilherme (Chanson de Guillaume, c.
1140): é uma das poucas canções de gesta de antes de
· A Coroação de Luís (Couronnement de Louis,
1150-1170): a canção, como indica o título, desenvolve-se ao redor da coroação
de Luís
o Piedoso,
filho de Carlos Magno. Ao morrer o rei, o príncipe Luís tem apenas 15 anos e
vai à corte de Gulherme de Orange. Juntos vão em peregrinação a Roma, que
encontram cercada por sarracenos. Na batalha que se segue, Guilherme consegue
livrar a cidade dos invasores.
· Le Charroi de Nîmes (Comboio de Nimes,
1150-1170): Luís o Piedoso encarrega Guilherme de tomar a cidade de Nimes dos sarracenos.
Guilherme se disfarça de mercador e esconde suas tropas num comboio de
carroças; assim consegue entrar na cidade e tomá-la.
· Le Prise de Orange (A Tomada de Orange,
1150-1170): Guilherme decide tomar a cidade de Orange, governada por
Orable, uma bela rainha sarracena. O nobre franco consegue tomá-la e seduzir a
rainha, que é batizada - com o nome de Guibourc - e casa-se com Guilherme.
· Aliscans (fins séc. XIII):
· Girart de Vienne (Geraldo de Vienne, c.
1180): de Bertrand de Bar-sur-Aube.
· Enfances Guillaume (Juventude de Guilherme, séc.
XIII)
Ciclo dos Barões Rebeldes
Neste grupo
estão agrupadas várias canções que retratam nobres em conflito com outros
nobres ou Carlos Magno. Acredita-se que estes poemas, datados de fins do séc.
XII e séc. XIII, refletem a perda de poder dos barões frente a um poder real
cada vez mais forte e centralizado[7].
Apesar disso, os heróis rebeldes deste ciclo não questionam o princípio de autoridade
feudal nem tentam depor os reis com os quais estão em conflito[7].
O ciclo também é chamado Ciclo de Don de Mogúncia, por Don de Mogúncia
(Doon de Mayence) ser o ancestral fictício de vários heróis rebeldes como Reinaldo de Montalvão e o mago Maugis.
· Quatro filhos de Amão (Quatre fils
Aymon, fins do séc. XII): trata do conflito entre os quatro filhos do duque
Amão (Aymon) e Carlos Magno, retratado como um rei vingativo e traiçoeiro. Os
quatro irmãos são ajudados pelo seu primo, o mago Maugis, e seu cavalo mágico
Baiarte. O principal herói do poema é Reinaldo de Montalvão.
· O Cavaleiro Ogier (Chevalerie Ogier, início
do séc. XIII): o personagem do título é Ogier o
Dinamarquês
(Ogier le Danois), criado na corte de Carlos Magno. O filho bastardo de Ogier é
morto por um dos filhos do rei, Carlos o jovem. Como o crime não
é punido pelo rei, Ogier rebela-se e aguenta um cerco em seu castelo durante
sete anos, até ser capturado. Uma invasão sarracena faz com que sua ajuda seja
necessária, e Ogier salva a França. Casa-se então com uma princesa inglesa e
recebe feudos de Carlos Magno.
· Raoul de Cambrai (fins do séc. XII): Raul de
Cambrai disputa o feudo de Vermandois com Herberto I de Vermandois. Como o rei
carolíngio Luís
de Ultramar
apóia Herberto, Raul guerreia com os dois.
· Girart de Roussillon (c. 1170)
Ciclo das Cruzadas
Conjunto de
canções de gesta sobre a Primeira
e a Terceira Cruzadas, composto por cerca de trinta
poemas[8].
Em várias o herói é Godofredo de Bulhão, conquistador de Jerusalém
em 1099.
· Canção de Antioquia (Chanson d'Antioche, fins séc.
XII): como indica o nome, trata da viagem dos guerreiros da Primeira Cruzada à
Terra Santa e do Cerco de Antioquia (1098), em que
foi tomada a cidade.
· Canção de Jerusalém (Chanson de Jèrusalem, séc.
XIII): trata da chegada dos cruzados da Primeira Cruzada à Terra Santa e do cerco de Jerusalém, além da posterior batalha
de Ascalão
(travada a 12 de Agosto de 1099).
· Chétifs (Cativos, séc. XIII)
Canções de gesta em castelhano
O termo
"canção de gesta" (em espanhol, Cantar de gesta) também é usado
em referência à poesia épica escrita em castelhano
antigo durante a Idade Média. Apenas três poemas, dois dos quais de maneira
fragmentária, estão preservados atualmente:
· Poema
de Mio Cid:
é a única canção de gesta castelhana que ese encontra quase integralmente
preservada e é a mais antiga, datando de fins do séc. XII. O poema narra as
aventuras e conquistas de Rodrigo Díaz de Vivar, chamado Mio Cid
ou Cid Campeador, um dos principais heróis da Reconquista da Península
Ibérica.
· Mocedades de Rodrigo: conhecida
através de um manuscrito tardio datado de cerca de 1360. Narra as aventuras de
juventude do Cid. O único manuscrito preservado possui 1164 versos e uma parte
em prosa.
· Canção de Roncesvales: apenas dois folios contendo 100
versos existem atualmente desta canção, datada do séc. XIII. O fragmento
preservado está relacionado a um episódio imediatamente posterior à Batalha
de Roncesvales
e mostra Carlos Magno lamentando-se pela perda dos seus paladinos,
especialmente Rolando.
Há textos em
prosa e outros textos medievais que sugerem a existência de outras canções de
gesta castelhanas hoje perdidas. Um exemplo é a hipotética Canção dos sete
infantes de Lara, conhecida graças a versões em prosa, e a Canção de
Fernán González, cujo argumento é conhecido graças ao Poema de Fernán
González, do séc. XV.
A épica medieval castelhana - representada especialmente pelo Poema de Mio Cid - diferencia-se da francesa em alguns aspectos. O mais chamativo é o realismo do argumento; as descrições geográficas são bastante precisas e de maneira geral não há explicações mágicas (intervenções divinas, milagres) na história.
Referências
1. CEIA, Carlos. Canção de gesta no E-Dicionário de
Termos Literários
2. Chanson de Geste na
Medieval France: an encyclopedia
3. "Charlemagne" no Dictionary of Medieval
Heroes
4. História da Literatura
Francesa,
por Gert Pinkernell (em alemão).
5. "King Cycle" na Medieval France: an
encyclopedia.
6. Guillaume d'Orange
Cycle na Medieval France: an encyclopedia
7. Rebellious Vassal
Cycle na Medieval France: an encyclopedia
8. Cruzade Cycle na
Medieval France: an ecyclopedia
Bibliografia
· William W. Kibler. Medieval
Ver também
·
Canção
dos Nibelungos
Ligações externas
· (em francês)-La Chanson de Geste, com uma extensa
lista de chansons e referências úteis.
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